Uma vez lá




O Ouvidor 63 é localizado no bairro da Sé, na Rua do Ouvidor, número 63. O bairro possui, em sua maioria, prédios mais antigos, típicos do centro da cidade, além de alguns comércios, como mercearias, barbearias, bares, restaurantes, comércio ambulante e uma atrativa loja de roupas africanas próxima ao local. Por se tratar do centro, as pessoas nas ruas são de estilos diversos: algumas de trajes sociais, outros vestidos de maneira informal e alguns moradores de rua. Toda a nossa visita durou cerca de 2h30 (das 14h30 às 17h) e não foi necessário pagar pela entrada. 



Ao chegarmos ao local, fomos recepcionados pela Alexia – a mesma mulher que respondeu a mensagem no Facebook, dizendo que poderíamos ir visitar. Mas, ela não se lembrava de ter respondido e, como estava tomando conta de seu brechó, que se encontra bem na entrada do Ouvidor, não estava disponível para nos acompanhar. Então, após um tempo, um homem se ofereceu para cuidar do brechó enquanto ela apresentava o prédio pra gente, já que era uma das moradoras.



Já na entrada, havia uma moça vendendo comida vegana, alguns doces e bebidas por preços bem acessíveis. Um dos integrantes do grupo comprou dois pães com vegetais e um pedaço de bolo, o que deu R$ 3,00.


Conhecemos andar por andar, sendo que cada um tem sua autonomia organizacional, algo bastante gratificante e até alternativo, tendo em vista todas as relações hierárquicas que nos são produzidas socialmente.  Por se tratar de vários coletivos culturais dentro do prédio, os andares são separados pelo tipo de arte produzida e os ambientes, no geral, não eram barulhentos: nada de conversas nem risadas muito altas e, quando havia música era num volume agradável. 


Havia moradores do prédio, artistas que não residiam, mas produzem no local e visitantes externos. Inclusive, havia vários estrangeiros, em sua maioria sul-americanos. A maneira de se vestir entre os moradores do prédio era semelhante, porém se contrastava com o cotidiano, contendo caracteres despojados, informais e que remetiam de certa forma aos hippies dos anos 60/70, bem singulares. Agiam com naturalidade em meio ao ambiente, que mistura traços artísticos, tanto de produção quanto de exposição, com traços domiciliares, com móveis domésticos, onde muitos objetos do prédio eram pegos, estilizados e reutilizados. Inclui-se a presença de alguns animais, como cães e gatos, andando entre os corredores.  Os moradores pareciam acostumados com a presença de visitantes, lidando de forma natural, uns seguindo no que faziam, outros se prontificando a conversar sobre o prédio, suas vidas, arte e etc. Dessa forma, existiam ações variadas: pessoas comendo, bebendo, fumando, conversando, produzindo, etc.

Um casal que pediu para tirarmos foto deles. 





Eram de fato muitos andares para pouquíssimo tempo de experiência e observação. Como nos foi nos dito por um dos ex-moradores do Ouvidor: “um dia é muito pouco para o conhecimento da essência desse local”. Não havia um espaço sequer que não chamasse a nossa atenção, mas alguns merecem destaque, como o teatro do Ouvidor, localizado no térreo, com direito a plateia, palco e cortinas pretas. Havia também um andar voltado só para a produção de conteúdo musical, onde também tinha uma parede amarela que chamou muito a atenção, em meio às frases de efeito, esperança, revolta, dentre outras mais.



Teatro localizado no térreo. 

Percorrendo alguns andares, outros pontos chamaram nossa atenção também, como uma área onde havia alguns acervos, uma espécie de biblioteca, onde se encontravam duas pessoas, uma moça e um rapaz, ambos com roupas e adereços artesanais e o som ambiente se tratava de música xamânica, a qual era produzida por grupos que viveram no nosso planeta há muito tempo atrás, os quais não distinguiam religiões, ciência, etc.

Biblioteca localizada no Ateliê Amarelo/Amarillo.

Alexia nos levou até o andar onde ela produzia suas obras. Foram-nos mostradas esculturas, quadros dela em parceria com outros artistas (enfatiza-se essa interconexão e esse intercâmbio de conhecimento entre os moradores) e suas confecções de moda – ela nos mostrou as customizações que faz em algumas peças de roupa. Sua filha pequena estava no local brincando com dois lindos gatos enquanto observávamos sua casa, que também é seu espaço de trabalho.

Filha de Alexia brincando com o gato.
Alexia mostrando a blusa que customizou usando cloro.
Esta calça ela fez espirrando tintas de cores diferentes. 

Quando estávamos nesse ambiente, um dos artistas, chamado Felipe Xianca, apareceu para falar um pouco das suas obras e projetos. Algumas obras produzidas por ele estavam expostas e nós pudemos vê-las:

Felipe Xianca.
Projeto de uma obra de arte que será realizada pelo artista.


Uma das obras de Felipe.


Xilogravura de Felipe Xianca.

Chegamos a um andar onde havia uma galeria chamada “Nuventre”. Passamos a maior parte do nosso tempo nesse local, pois era grande e havia alguns sofás.








Havia alguns quadros expostos nas paredes da galeria: alguns reproduzindo rostos, outro reproduzindo uma orgia e também tinha um outro espaço dentro da galeria, o qual, para conhecer, era preciso entrar em uma “boca” e, então, era possível ver mais obras e um banheiro. Outro ponto que chamou atenção foi que, ao colocarmos a cabeça para fora de uma janela, era possível ver um varal com algumas roupas penduradas, e, além disso, os tijolos, de uma das paredes onde um quadro estava exposto, estavam à mostra, o que quebrava totalmente com o paradigma de que exposições artísticas precisam de um espaço reservado e preparado para acontecer: o ambiente domiciliar e artístico se fundiam. Conversamos com um outro morador do Ouvidor, que disse que, geralmente, o dinheiro que os artistas ganham é aplicado em melhorias no prédio, como compra de lâmpadas, por exemplo. Cada um decide o que faz com o seu dinheiro, mas todos concordam em tirar pelo menos uma parte para a restauração do prédio onde eles moram.


Quadro exposto na parede sem acabamento e Alex, um dos moradores do Ouvidor.






Por alguns andares apenas passamos rapidamente: foi pedido pela Alexia que não adentrássemos ao 10° andar, pois, por mais que ele fosse todo aberto, os moradores de lá eram um pouco irritados e não gostavam de visitas. Isso nos fez pensar no respeito à privacidade e ao modo de viver do outro: independente de qualquer coisa, cada um tem o seu espaço respeitado, e se o jeito de alguns é diferente do de outros, este também é respeitado. Subimos até o terraço do prédio, onde havia uma pequena horta e algumas pessoas grafitando. Observamos o local durante um tempo, atentos às paisagens e ao próprio sol que naquele dia resolveu aparecer com bastante intensidade.






Vimos o coração da cidade de São Paulo, distante, silencioso, seguro. Foi no terraço onde encontramos um ex-morador do prédio, chamado Nicolay Blues, acompanhado de uma moça que estava visitando o local pela primeira vez. Conversamos com ambos por algum tempo sobre como era morar lá e o homem disse que as pessoas ali eram muito noturnas: 4h da manhã os moradores conversavam, bebiam e falavam alto. Para ele, Nicolay, não deu certo, pois às 6h da manhã ele queria levantar para fazer as suas coisas, e as pessoas tinham acabado de ir dormir. Outro ponto apontado por ele foi o fato de que os moradores, por sempre buscarem crescer intelectualmente, acabam se sentindo orgulhosos e superiores às outras pessoas e tendo o ego muito grande.

Nicolay e sua amiga.




Algo que chamou a atenção, até pelas próprias declarações da Alexia e por um mural visto no térreo, foi a forma na qual se organizavam para reger as questões do prédio: seja em questões alimentícias, de limpeza, organização de eventos, arrecadação de dinheiro para transformações no prédio e até no ato da ocupação, em 2014. A ausência de um líder, o diálogo contínuo, a igualdade quanto a importância da opinião de cada um, além da esquematização das atividades semanais do local: tudo parece bem esclarecido, funcionando de maneira orgânica, mostrando a possibilidade de uma sociedade onde as pessoas possam dialogar mais.









Ao sairmos do Ouvidor, percebemos a presença de 3 mendigos que estavam bem na frente do prédio, e, como quase fizemos um caminho mais longo para voltar à estação Anhangabaú, subimos até o meio do viaduto e vimos a grande quantidade de carros que passava por ali, já que era 17h. 





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